Não fosse a luta contra o Apartheid da militante sul-africana Nomzamo Winifred Madikizela Zanyiwe, Winnie Madikizela-Mandela, ou simplesmente Winnie, pela liberdade de seu companheiro Nelson, talvez o mundo não tivesse conhecido o símbolo Mandela, fonte de inspiração na luta por liberdades em todos os cantos do planeta. Winnie, a que abriu picadas e apontou caminhos em nossa histórica jornada em defesa da igualdade racial, desde seu campo de batalha na África do Sul, a ex-esposa de Nelson Mandela, com quem foi casada 38 anos, incluindo os 27 que ele viveu na cadeia, partiu dos conturbados espaços deste nosso mundo em crise no dia 2 abril deste ano de 2018, aos 81 aos.
Nascida em 26 de setembro de 1936, na mesma terra onde nasceu Nelson Mandela, a província do Cabo Oriental Sul, Winnie conseguiu um feito raro para as mulheres negras de sua época: estudou, conseguiu entrar para uma universidade e, mais raro ainda, graduar-se no ensino superior, em Serviço Social.
O casamento aos 21 anos com o advogado de 40 anos, Nelson Mandela, militante político, divorciado e pai, que logo depois caiu na clandestinidade, a colocou de vez no olho do furacão da militância política: “Nunca tivemos uma vida familiar (…) não podíamos tirar Nelson de seu povo. A luta contra o Apartheid, pela Nação, vinha primeiro”, escreveu ela em suas memórias.
Mas foi depois da prisão de Mandela em agosto de 1962 que Winnie assumiu a liderança da resistência. Deixada sozinha com suas filhas pequenas, mesmo tendo se tornado alvo do regime racista – a prenderam, a baniram em um vilarejo distante, Brandford, lugar que batizou como “sua pequena Sibéria”, atacaram sua casa com bombas – e mesmo assim foi Winnie quem mobilizou o mundo em defesa da liberdade de Nelson Mandela e do fim do Apartheid na África do Sul.
A imagem de “comunista perigosa”, construída pela polícia do Apartheid, surgiu em Brandford, onde os moradores locais ficaram proibidos de falar com ela e também com sua pequena filha Zindzi, sob pena de prisão. Winnie não se abalava: “Ao me mandar para o desterro, imaginavam que, junto comigo, também podiam banir minhas ideias políticas. Não poderiam me prestar maior homenagem”, registrou Winnie em suas memórias.
Contra todas as probabilidades, a Nomzamo tornou-se uma das principais figuras do Congresso Nacional Africano (CNA), vanguarda da luta antiapartheid. Foi de lá que, em 1976, Winnie convocou os estudantes de Soweto a usar a radical paixão dos “townships” para “lutar até o fim”.
Com o tempo, sua posição radical e seus métodos não convencionais de ataque e defesa, chegou a formar sua própria guarda jovem, o “Mandela United Football Club” (MUFC); em 1991 foi condenada a seis anos de prisão como cúmplice no sequestro de um jovem ativista, Stompie Seipei, pena mais tarde comutada para uma multa simples.
Winnie parece não ter se adaptado ao regime democrático que ela mesma ajudou a criar. Nomeada vice-ministra da Cultura após as primeiras eleições multirraciais de 1994, Winnie foi demitida por insubordinação pelo governo de Nelson Mandela, em 1995.
Em 1998, outra condenação, dessa vez a Comissão da Verdade e Reconciliação (TRC) encarregada dos crimes políticos do Apartheid declarou Winnie “culpada política e moralmente pelas enormes violações dos direitos humanos” cometidas pelo MUFC.
A resposta de Winnie? “Grotesco”, disse sempre a “Mãe da Nação” até os dias finais de sua vida, ante as muitas acusações de tortura.
Banida pela liderança do CNA, sentenciada novamente em 2003 por fraude, Winnie ainda retornou à política quatro anos depois, como membro do Comitê Executivo do partido, o corpo administrativo do CNA. Mas os tempos, definitivamente, já eram outros. Deputada eleita pela primeira vez em 1994, e reeleita em todas as eleições seguintes, sua presença incendiária foi desaparecendo aos poucos do Parlamento e do campo da luta política.
No começo de 2018, o Supremo Tribunal de Apelações da África do Sul arquivou um processo movido por Winnie, que pretendia assumir a casa familiar de Nelson Mandela em Qunu, no Leste do País, de quem estava divorciada desde 1996. Ela afirmava que, de acordo com a jurisprudência local, a residência pertencia a ela, já que a comprou em seu nome em 1989, quando Nelson Mandela estava preso e o casal ainda estava junto.
O certo é que, turbulências à parte, sem Winnie Mandela não haveria as conquistas de direitos que causaram a queda do regime racista na África do Sul e, também do lado de cá do Atlântico, mudaram para sempre nosso próprio destino e nossas próprias vidas. Mesmo algo dando terrivelmente errado, “Ela foi uma formidável defensora da luta, um ícone da libertação”, afirma Desmond Tutu, o sul-africano vencedor do Prêmio Nobel da Paz.
Amada pelo povo sul-africano e respeitada pelos povos do mundo inteiro, Nonzamo, a que na língua dos Xhosa, seu povo, “nasceu para enfrentar muitas provas”, de fato enfrentou muitas provas. Apenas antes do Levante de Soweto, Winnie já acumulava 99 acusações formais de crimes por “corromper a juventude do país” porque os liderava e os incentivava a manterem seus espíritos livres e combativos contra um regime que os aniquilava.
Agora, depois de passar por essa vida essa vida lutando por todas as causas, da luta cotidiana para que os negros e negras de seu país pudessem ter o direito de entrar em uma loja aos inúmeros conflitos judiciais, à organização das massas, à brilhante ofensiva na diplomacia internacional pelo fim do Apartheid e, depois, pela efetiva inclusão social e política do povo negro nos espaços de decisão e de poder da África do Sul, Winnie Madikizela-Mandela repousa para sempre nas terras de Orum. Bom descanso, camarada!
ANOTE AÍ:
Iêda Leal – Professora da Rede Pública de Ensino, Secretária de combate ao racismo da CNTE, Coordenadora do C. R. Lélia Gonzales, Tesoureira do Sintego e Vice-presidente da CUT – GO