Militarização das escolas: Falência do estado goiano?
“O governo que investe em militarização não acredita em democracia.” Aldimar Jacinto Duarte
Goiás deve se tornar em breve a unidade da Federação com o maior número de escolas militares. Por iniciativa do governador Marconi Perillo e com o aval da Assembleia Legislativa, a expectativa é de que, até o final de 2015, 24 novas unidades educacionais sejam militarizadas, totalizando 43 unidades em todo o estado, conforme anunciou o jornal O Popular (junho, 27).
O modelo consiste em dividir as funções da escola: a parte administrativa e o controle disciplinar ficam a cargo da Polícia Militar, da Secretaria de Segurança Pública. A área pedagógica permanece sob comando da Secretaria de Educação. A justificativa apresentada pelo governo é o “rigoroso padrão de qualidade” das escolas militares. Some-se a isso “o combate à violência”.
Educadores e especialistas têm reiterado que a medida é desastrosa para a Educação. A presidenta do Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Goiás (Sintego), Bia de Lima, é categórica: “O Sintego é terminantemente contra a militarização. Isso vai trazer um prejuízo irreparável e vai levar décadas pra que a sociedade compreenda o tamanho desse prejuízo”.
No que diz respeito à violência, a coordenadora do Observatório de Violência nas Escolas do Brasil, doutora em Ciências da Educação, Miriam Abramovay, argumenta: “militarizar a escola é algo muito grave, porque a escola atesta que ela não é capaz de nada, que para ela funcionar tem que vir gente de fora, tem que vir a polícia. E aí dizem que isso resolve, mas resolve pela repressão”, explica.
Responsável por coordenar pesquisas da Unesco sobre o tema, ela lembra o fracasso da prática nos Estados Unidos: “quando a polícia entrou nas escolas americanas, a violência só aumentou. Sabemos isso porque lá tem números, aqui não temos números.
Os adolescentes e jovens estão sempre tentando burlar as formas de repressão que eles sofrem, então por isso que não [se] resolve a violência desse jeito”.
No início de 2014, ao saber do que ocorria em Goiás, o educador e escritor José Pacheco, idealizador e ex-diretor da Escola da Ponte1 , unidade de referência da Educação pública em Portugal desde 1976, escreveu emblemática Carta2 para Florestan Fernandes3, em que critica: “Quanta ignorância a de pensar que se poderá acabar com a violência explícita com recurso à violência simbólica, numa escola-caserna!”. E, referindo-se à escola que deu início ao processo, o Colégio Fernando Pessoa, de Valparaíso de Goiás, indaga: “Por que não deixam o poeta em sossego? Por que se calam os educadores brasileiros, permitindo que a poesia e a pedagogia sejam vilipendiadas?”.
Na verdade, ao protagonizar esse processo, o governo goiano emite sinal claro de que que a Educação que comanda, vítima dos desmandos constantes do poder público, trilha o perigoso caminho do retrocesso. Um caminho que aposta na repressão e na submissão, quando as experiências, os estudos, apontam em outra perspectiva. Para a maioria dos estudiosos, o “ensino de qualidade” das escolas militares é questionável.
Em Educação Sitiada, matéria publicada pelo Portal Aprendiz4 em fevereiro de 2014, o então professor de ética e filosofia política da Universidade de São Paulo (USP), Renato Janine Ribeiro, atual ministro da Educação, pontua: “Em um período fundamental de formação, ao invés de educar, você adestra e disciplina. O que o governo de Goiás está fazendo é renunciar à formação dos sujeitos”.
Em uma escola militar, a rotina é praticamente a de um quartel: a hierarquia e a disciplina norteiam práticas espartanas, da farda ao corte de cabelo; da obediência cega à punição pelo desvio, pela ousadia. A continência, o perfilamento, a revista, enfim, tudo dentro das regras militares. Práticas absolutamente conflitantes com o que defendem grandes pensadores como Paulo Freire, por exemplo. Sujeito histórico vira balela.
Para Freire, a Educação não pode ser um ato de opressão; ao contrário, é pela Educação que o ser humano se faz dono da sua própria história e se liberta. Para o mestre, há de se ter clara a incompletude humana, de se buscar a mudança, a comunhão, a solidariedade entre os seres, para a construção do conhecimento. No modelo militar, isso não ocorre, porque a autonomia é mutilada, as relações são antagônicas: há opressores e oprimidos. É preciso, pois, rebelar-se.
No fim da sua Carta, José Pacheco alerta, dirigindo-se ao mestre Florestan Fernandes: “Que os educadores brasileiros se orgulhem do teu exemplo e se oponham a políticas públicas desastrosas. Que sejam aquilo que disseste dever ser um professor: um cidadão e um ser humano rebelde”.
Rebeldia é o que não falta ao Sintego quando questiona e discorda da política imediatista e superficial de promover política educacional: “a militarização atenta justamente contra as lutas antigas que nós temos vivido, o processo de democratização, a consciência crítica, a necessidade de construirmos um cidadão livre. Há mais de 30 anos vimos lutando por uma Educação pública e de qualidade para todos. Militarizar a escola é retroceder ao tempo da Ditadura Militar, quando a democracia e a autonomia das escolas ficaram ameaçadas”, pontua Bia de Lima, que conclui: “Nós, que somos professores, educadores, sabemos a dimensão, o risco, o estrago que isso vai provocar ao longo das gerações na construção de cidadãos conscientes”.
E há muitos rebeldes, felizmente. Dentre eles, o professor doutor em Educação Aldimar Jacinto Duarte, da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), que alerta: “o perfil de colégio militar implantado pelo governo estadual é antidemocrático e não inclusivo. Além disso, é voltado para atender estatísticas”. E acrescenta: “O governo que investe em militarização não acredita em democracia”.
Entre os que defendem a medida, muitos citam o apoio das famílias nas comunidades de escolas já militarizadas. No entanto, Bia de Lima explica: “A verdade é que os pais, às vezes, por não terem uma presença mais próxima dos filhos, estão substituindo seu papel e colocando este controle, esta ordem e disciplina nas mãos de militares. É uma fuga que não ajuda a construir um cidadão com valores, com posições claras, nítidas, posições que venham construir um jovem, um adulto maduro, consciente e crítico. Infelizmente isso é um problema sério que, às vezes, no momento, os pais não percebem, mas, na frente, pode ser que o prejuízo seja irreparável”.
A quem interessa transformar as escolas em quartéis? “À Educação é que não é”, afirma Bia de Lima. “Entendemos que nós não precisamos de militares nas escolas, nós precisamos de professores motivados, professores valorizados, coisa que infelizmente em Goiás não existe. Hoje não existe segurança nas ruas e, em vez de colocar militares para garantir a segurança da população, estão colocando militares dentro das escolas. Essa inversão de papéis vai ser um estrago imensurável para a Educação e para a construção de novos cidadãos”.
- escoladaponte.pt
- portal.aprendiz.uol.com.br
- Florestan Fernandes (1920–1975) – sociólogo, professor, pesquisador, com quase 80 livros publicados. Referência de pensamento, ele não só refletiu sobre a escola brasileira, apontando seu caráter elitista, como atuou pessoalmente em defesa da Educação pública e de qualidade para todos.
- uol.com.br
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