Kianda: a sereia banto de Angola
Angola reúne muitos mitos e lendas devido a uma grande diversidade de culturas : o país junta pessoas com origens, línguas e costumes diferentes, o que faz a sua riqueza. Uma personagem mítica muito popular em Angola é a Kianda.
Por Noémie Pereira Lopes/
No dicionário quimbundo/português, a palavra quimbunda “kianda” significa um monstro fabuloso da mitologia, deus das águas que se pode traduzir pela palavra “sereia” no imaginário português. Na realidade a Kianda é uma personagem muito mais complicada que pode tomar muitas aparências e dissolver-se no mar.
É um ser sobrenatural que preside o império dos mares e dos rios, das montanhas e dos bosques.
Mais geralmente, a Kianda é uma divindade dotada de poderes sobrenaturais que pode fazer tanto o bem como o mal. Ela inspira o medo e o perigo mas também suscita o amor.
Cada meio aquático, cada curso de água, cada lagoa tem uma Kianda que toma o nome do rio ou do lago onde ela fica. Mas existe A Kianda, que é a sereia das sereias, a rainha de todas elas. É a mais poderosa, a mais amada, venerada e temida de todas. O mito é acerca dela.
Conta-se que a Kianda vivia perto da Praia do Bispo, em Luanda. Um dia, viu um homem pobre e triste que andava sozinho à beira-mar. Num ato de bondade ela ofereceu-lhe o acesso a um tesouro escondido que só ela conhecia. O homem enriqueceu logo e ao mesmo tempo que ele enriquecia tornou-se egoísta e ganancioso, só usava o dinheiro para o seu próprio interesse. A Kianda, que ia observando o homem, ficou dececionada com o que viu e decidiu dar-lhe uma lição, fazendo desaparecer o tesouro e deixando o pescador sem nada dum dia para o outro.
Por vezes, também dizem que a Kianda enfeitiçava o homem, retendo-o prisoneiro no fundo do mar para sempre.
Várias telas representam a Kianda com uma forma de sereia.
Por exemplo “A felicidade da Kianda” de um pintor amador angolano, Admario Costa Lima. Aqui a Kianda está gravida e é por isso que ela está feliz.
Outro exemplo é uma tela que se titula “Oferendas para a Kianda” de George Gumbe. O pintor representa-se pintado na tela no meio de animais terrestres ou marítimos, o que pode significar que ele também é uma oferenda para a divindade.
Existe também uma escultura no porto de Lobito no sul de Angola que representa uma sereia e que pode fazer pensar na Kianda.
O povo angolano respeita imensamente a Kianda e cada ano é celebrado um ritual de adoração para ela. Em Luanda, a festa decorre no início de novembro. As pessoas trazem comida para fazer um banquete e cantam e dançam ao mesmo tempo. Depois há uma procissão no mar e a comida é deitada para o mar enquanto se toca o batuque para satisfazer a Kianda.
Mas a lenda da Kianda não vive só na oralidade. Pepetela, um escritor angolano que ganhou o prêmio Camões em 1997, escreveu e publicou em 1995 um romance chamado “O desejo de Kianda” que trata do assunto.
A história ocorre em Kinaxixi, perto de Luanda. Os prédios do bairro estão todos a cair uns após os outros e ninguém percebe porquê, pois ninguém fica ferido na queda dos edifícios que caem lentamente para o chão. Os cientistas declaram que a água foi toda retirada do cimento que segurava o prédio, provocando a queda, mas ninguém sabe como nem porquê.
A resposta a esta pergunta é dada por Cassandra, uma rapariga que consegue ouvir uma voz que vem das águas de uma poça perto dos prédios, e ao longo do texto descobrimos que é a voz da Kianda, e que é ela a responsável pela destruição dos edifícios. A razão é que o bairro foi construído em cima de uma lagoa onde ela morava antigamente e ela está à procura de uma maneira de recuperar o seu bem, por isso ela começou a cantar e os prédios foram caindo um a um.
Esse era o desejo de Kianda.
Para concluir, podemos dizer que Angola é um país cheio de mitos e histórias, curiosamente o próprio país se tornou um mito, pois agora muitos portugueses acreditam que se vão para Angola poderão enriquecer mais facilmente do que no próprio país.
Quem sabe se não encontrarão um dia o tesouro da Kianda ?
Fonte desta lenda:
Outro texto muito interessante sobre Kianda encontra-se na página Nossos Ancestrais, Nossos Ancestrais, no Facebook:
Kianda, a Sereia Banto
Trecho do artigo de doutorado “A diáspora de Maria: relações sincréticas e culturais entre Nossa Senhora, Kianda e Nzuzu em O outro pé da sereia, de Mia Couto” de Silvio Ruiz Paradiso.
Uma sereia negra – ao primeiro momento, uma ideia antitética, visto que nosso imaginário caracteriza este ser pela visão eurocêntrica, isto é, branca e loira.
A palavra sereia vem do grego Σειρiνας, e é justamente a partir da mitologia da Grécia Antiga que este ser, parte mulher e parte peixe, se espalhou para a literatura e demais artes. A tradição diz que eram filhas do rio Aquelôo (Achelous) e de alguma das musas (JEHA, 2007, p.87).
Todavia, as sereias não estão destinadas a serem protagonistas apenas da mitologia européia. Na África, muitas são divindades aquáticas, cuja iconografia é de uma sereia.
Angola, por exemplo, possui suas sereias encantadas, poderosas, influindo para o bem e o mal, com a respeitosa ambivalência popular de amor e medo, como é o caso de Kianda (ou Quianda, por variação).
De origem angolana, Kianda aparece nas obras de grandes escritores, como Manuel Rui, com Rioseco e Um anel na areia; Mãe Materno Mar, de Boaventura Cardoso, em obras de Luandino Vieira, entre outras. Secco (2009, p.2) foca o romance O Desejo de Kianda, de Pepetela, “no qual a divindade é alegoricamente apropriada pelo discurso ficcional.
O maravilhoso invade a narrativa e o grito rebelde de Kianda ressoa na dimensão mítica e literária”. A sereia Kianda é relembrada e celebrada por várias partes de Angola, Congo, República Democrática do Congo etc.:
Quianda é a sereia marítima.
Vive nas águas salgadas ao redor de Luanda e por toda orla do Atlântico angolano. Sua velha morada era nos rochedos que circundam a fortaleza de São Miguel, entre o Marginal e a Praia do Bispo. Diante da cidade está a ilha de Luanda, Muazanga para os auxiluandas, seus nativos, ligados ao continente por uma larga ponte.
Quianda é aí culto antigo para os auxiluandas. Tem uma intérprete, sacerdotisa, devota profissional, a quilamba, açafata em suas festas […]. (SELJAN, 1967, p.32).
Kianda é o singular da palavra Ianda, ambas oriundas do verbo uanda, em quimbundo, sonhar. Secco revela que a deusa angolana das águas e da vida traz, desse modo, etimologicamente expressa em seu nome, a semântica dos sonhos, já que é função dessas divindades marinhas a comunicação com o mundo ancestral dos antepassados (SECCO, 2009, p.6).
Dutra (2001), evocando o trabalho de pesquisa sobre as sereias africanas de Virgilio Coelho (1997), observa Kianda como a nomenclatura das sereias na região do rio Kwanzà, que banha a cidade de Luanda e avança em direção ao interior do país. À medida que o rio segue seu rumo, a denominação Kitútá fica mais evidente, enquanto Kixìmbí é o termo mais antigo (DUTRA, 2001, p. 135).
Porém, Seljan, baseada em Câmara Cascudo, vê Kitútá e Kixìmbí como outras classes de sereias. A Kitútá, moradora dos rios e lagoas, montes e matas, pode viver bem longe da população; já Kixìmbí, que pode ser masculina ou feminina, têm domínio nos rios e lagoas da região. (SELJAN, 1967, p.33).
A pesquisadora ainda continua, revelando que Kianda realmente é uma water genius (gênio da água), antiquíssimas entidades locais valendo como forças materializadoras do próprio elemento.
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1 Do original banto Kyàndà. Há variações presentes nas citações, como Quianda. (Nota do autor do artigo.)
260 Uniletras, Ponta Grossa, v. 33, n. 2, p. 253-267, jul./dez. 2011 Professor Silvio Ruiz Paradiso.