Na tarde de hoje, 13 de dezembro, estávamos preparando a publicação do Editorial do Instituto Socioambiental (ISA) sobre o Decreto do Governo Temer para inviabilizar a demarcação das Terras Indígenas quando nos chega esta Nota Pública da APIB sobre o mesmo assunto. Dada a relevância e o momento crítico porque passa o País e o impacto deste “Decreto da Covardia Histórica” sobre o futuro de nossos povos originários, a Xapuri publica os dois documentos em solidariedade e defesa dos povos indígenas brasileiros:
NOTA DA APIB
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), as organizações indígenas regionais que a compõem e suas distintas associações de base denunciam e repudiam veementemente para a opinião pública nacional e internacional a macabra decisão do governo ilegítimo de Michel Temer de colocar fim à demarcação das terras indígenas, portanto à existência dos povos indígenas, por meio da edição de um Decreto que estabelece novos procedimentos para o ato de demarcação, em substituição do atual Decreto 1.775/96.
Após inconsistentes, retóricas e absurdas justificativas que desvirtuam e anulam de forma escandalosa o espirito do texto constitucional (Artigos 231 e 232), das leis infraconstitucionais e tratados internacionais assinados pelo Brasil – Convenção 169 da OIT e Declaração da ONU sobre os direitos dos povos indígenas – a Minuta de Decreto, vazada por meios impressos de grande circulação, propõe-se claramente a procrastinar ad infinitum, senão enterrar de vez, o direito territorial indígena e a demarcação das terras indígenas, assegurando a prevalência de artimanhas que empurrarão os povos indígenas à remoção, reassentamento ou expulsão, disfarçadas de legalidade, de seus territórios.
Tudo com o objetivo de atender vergonhosamente os interesses da bancada ruralista, do agronegócio, a implantação de empreendimentos de infraestrutura e o esbulho e usurpação dos bens naturais preservados milenarmente pelos povos indígenas, numa total negação de seu direito ao usufruto exclusivo previsto na Carta Magna.
A Minuta, reúne para isso, num só instrumento, todas as atrocidades contra o direito territorial dos povos indígenas contidas na PEC 215, nas condicionantes estabelecidas pelo STF estritamente para a Terra Indígena Raposa Serra do Sol e ressuscitadas pela Portaria 303 da AGU, bem como na equivocada tese do marco temporal adotada pela segunda turma da Suprema Corte a respeito deste direito originário fundamental.
A elaboração de um novo Decreto para a Demarcação das terras indígenas soma-se à já denunciada proposta de Decreto de reestruturação da Funai, que reduzindo orçamento e quadro de servidores, no contexto da PEC 55, e o desmonte das instituições e políticas públicas, vem de encontro com os propósitos da bancada ruralista que, por meio de uma CPI, busca desqualificar e fragilizar o papel do órgão indigenista, desmoralizar os povos indígenas e seus aliados, e impedir também a continuação das demarcações.
A APIB entende que contrariamente aos propósitos alegados de que com este Decreto de novos procedimentos para a demarcação estarão sendo superados os conflitos que envolvem povos indígenas e invasores de seus territórios, o governo Temer está nada mais do que decretando o agravamento dos conflitos, da violência, da discriminação, do racismo e da criminalização contra os povos indígenas, secularmente privados de seus direitos mais sagrados à vida, à dignidade, a uma identidade cultural e ao espaço físico e imaterial onde, mesmo com as adversidades, têm resistido secularmente enquanto povos diferenciados.
Pelo visto, em nada adiantam para esse governo as instâncias e mecanismos internacionais de observação e verificação dos direitos humanos, em especial dos direitos dos povos indígenas: a relatoria especial para povos indígenas e o Conselho de Direitos Humanos da ONU, entre outros, que tem alertado para a grave tendência em curso de etnocídio dos povos originários do Brasil.
A APIB e todos os povos e comunidades, organizações e associações que a compõem reafirmam que continuam em pé de luta, e resistirão, até as últimas consequências, contra quaisquer retrocessos em seus direitos que venham a ser propostos ou adotados pelos distintos poderes do Estado Brasileiro.
Pelo direito de viver!
Brasília – DF, 13 de dezembro de 2016.
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB
Mobilização Nacional Indígena
Arte: José Maria de Macedo
EDITORIAL DO INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL
Governo Temer prepara Decreto que, na prática, inviabilizará a Demarcação das Terras Indígenas
Em se dando crédito ao que informam os jornais, o Ministério da Justiça estaria finalizando uma proposta para alterar o procedimento administrativo de demarcação de Terras Indígenas, atualmente regido pelo Decreto 1.775/1996.
A minuta que chegou à imprensa é uma aberração sem precedentes: em vez de viabilizar o mandamento constitucional de demarcar essas terras, cria uma longa série de restrições de direitos e de obstáculos incabíveis. Se editada, bem se poderia chamá-la de “decreto da covardia histórica”.
O direito territorial indígena é “originário”, ou seja, precede à instituição do próprio Estado brasileiro. A proposta do governo nega tal caráter, subordinando esse direito a quaisquer interesses incidentes sobre a área identificada como indígena.
Para tanto, distorce decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e destitui de direitos as comunidades expulsas das suas terras antes da promulgação da Constituição de 1988, consolidando os crimes praticados contra os índios durante a ditadura civil-militar instalada em 1964.
A eventual aplicação dessa proposta criaria a inusitada e absurda figura dos “índios sem-terra”. O inciso III do artigo 27 da minuta diz expressamente: “o direito à reparação, por meios que podem incluir a restituição ou, quando não for possível, uma indenização justa, imparcial e equitativa, pelas terras, territórios e recursos que possuíam tradicionalmente (…)”. A categoria “terras que possuíam” inexiste na Constituição e o que se cogita – pagar aos índios por áreas que não serão demarcadas – viola o domínio constitucional que a União detém sobre essas terras e as reduz à condição de mera mercadoria.
A proposta cria outra instância de decisão sobre as demarcações, retirando competências da Fundação Nacional do Índio (Funai) e inserindo no processo vários órgãos que desconhecem as demandas indígenas ou defendem interesses contrários. Com isso, as propostas de áreas a serem demarcadas seriam bombardeadas antes de chegar ao Ministério da Justiça. A introdução de novos procedimentos formais tornaria praticamente impossível a conclusão dos processos demarcatórios (já bastante demorados atualmente), além de oferecer ganchos e pretextos para paralisá-los em juízo.
A proposta do governo inclui a revisão de limites de terras já demarcadas que, por qualquer motivo, não tenham sido ainda registradas na Secretaria de Patrimônio da União (SPU) e em cartório, subordinando-as aos novos procedimentos previstos, anulando etapas já cumpridas com base nas regras então vigentes e reabrindo conflitos já superados.
No entanto, a minuta sequer cogita uma solução para a real dimensão dos conflitos pendentes, como a indenização pela terra aos portadores de títulos legítimos, concedidos pelo próprio poder público e que incidam sobre áreas identificadas como indígenas. Hoje, a Constituição prevê apenas a indenização de benfeitorias realizadas de boa-fé.
Se publicada, a proposta do governo certamente será contestada no STF, assim como qualquer definição de limites de terras específicas que venha a ser prejudicada ou amputada por força da sua eventual aplicação. O Executivo estaria, ainda, sujeito a outros processos judiciais por omissão, uma vez que transferiria, na prática, para o Judiciário a solução do restante das providências demarcatórias a que está obrigado.
Enfim, a minuta divulgada é a pior proposta de normatização da demarcação de Terras Indígenas já formulada desde os tempos de ditadura. Ao que parece, o governo Temer trama, às pressas, a destruição do arcabouço legal construído durante o período democrático, antes dele próprio ajustar contas com a Justiça.