
Quem anda pelas ruas e quadras de Brasília distraído o suficiente para se perder em devaneios talvez se depare com um personagem que cada dia mais se torna icônico nas paredes da cidade: o Gurulino.
Sozinho ou acompanhado, ele se espalha por todos os cantos onde sua tinta possa fixar-se. Fruto de uma profunda imersão no universo meditativo da yoga, surgiu primeiro em 2009 como uma garatuja no rodapé do caderno onde o artista plástico Pedro Sangeon anotava suas epifanias.
De lá pra cá, sua criatura tomou forma e conteúdo, transbordou os limites da página e se misturou aos mais diversos materiais da vida cotidiana em forma de grafite.
Seja em trailers, muros, caixas de luz, passagens subterrâneas, onde houver uma brecha existe a possibilidade de ele se encarnar. Tanto é que hoje em dia o Gurulino ocupa um tempo-espaço importante na vida de seu criador, marcando sua trajetória pessoal e reforçando o seu intento como artista.
Antes do Gurulino, Pedro se aventurou nos caminhos da contemplação. Na Europa, passou a interessar-se cada vez mais pelos estudos herméticos que fazem parte da formação do yogui. Quem já viu seus grafites sabe que o aspecto esotérico é uma constante de sua obra.

A dedicação à prática meditativa durou um longo período durante o qual foram surgindo, ainda que em estado embrionário, os personagens que formam este ser complexo chamado Gurulino. Sim, pois ele é múltiplo, “é um grupo”.
As circunstâncias de atuação que a rua disponibiliza para o artista o levam a considerá-los de maneira fragmentária. Muitas vezes não dá tempo de elaborar uma narrativa visual. Arte de guerrilha, formada nos limites da legalidade, o grafite é rápido como um grito.
Não que seja sempre assim. Diversas vezes os proprietários de lojas encomendam os serviços do artista para estampar as fachadas de seus estabelecimentos. Sem o risco de ser visto como um contraventor, usufrui do espaço urbano com legitimidade.
Talvez o diferencial esteja na maneira como Sangeon aborda a cidade. E nesse ponto ele não está sozinho, vide os lambes do Coletivo Transverso (@coletivotransverso no Facebook). Suas intervenções nos levam a pensar. Não com o peso da preocupação e o senso da urgência ou da calamidade, mas sim com shantileza, em paz.
A própria figura do Gurulino reflete a essência de suas reflexões: um traçado simples e direto, uma forma plena, uma expressão de serena profundidade e um terceiro olho místico a coroar os outros dois ordinários. Quando menos se espera, lá está ele diante de nós considerando algo que também nos toca. Quem por ele passa leva consigo o germe de um diálogo apenas iniciado no muro:
“Ele porta uma mensagem intrínseca, mas acho que o mais legal desse trabalho é criar pontes com as pessoas e questionar nossos comportamentos padrões diante dos problemas que nos afetam, dos cotidianos até os mais existenciais. ”

Quando a civilização nos embrutece e estressa a ponto de tornar-nos não somente alheios, como contrários à vida, somente o insólito e o inesperado para elevar nossos pensamentos acima da confusão da luta diária e considerar com mais leveza a maneira como levamos as relações que estabelecemos conosco, com os outros seres, com as coisas e com o mundo.
Em tempos de violência, em que a palavra se verga sob o peso de mil e um rancores até virar palavra-de-ordem, o zen-grafite que semeia frases como “a esperança não espera”, “um amor imenso não cabe em um amor restrito”, “é impossível mas pode”, “o padrão é seu patrão? ” ou ainda “o que você vai ser quando entender? ” soa um tanto quanto antifônico, contracultural e desestabilizador.
Características muitas vezes associadas ao grafite histórico, que remonta suas origens modernas às agitações político-sociais dos anos 1960-70 e, principalmente, à emergência da cultura hip-hop em Nova York. “A rua é incontrolável e é a maior das escolas pra quem se relaciona e aprende com ela”, diz Sangeon.
O suporte poético do underground são as pedras, os vagões, os containers, os postes, as lixeiras, muros e paredes, fachadas, ruínas. Seja para desenhar, colorir ou marcar presença e pertencimento a um determinado território, seja para amplificar um verso em caracteres colossais ou fixar iluminações filosóficas e máximas políticas, o grafite fez das ruas um tipo de livro-galeria aberto a todos os olhos. “O que está sendo feito nas paredes da cidade é um registro histórico da nossa realidade coletiva. ”
Para além do moralismo que resguarda a propriedade privada e o patrimônio público contra os efeitos da tinta, é praticamente impossível dissociar a paisagem urbana de seus traços e cores.
Atualmente o Gurulino transbordou novamente para as páginas, dessa vez do Correio Braziliense, em tirinhas publicadas a cada domingo no caderno de cultura. Em formato comic o artista dispõe de espaço para articular toda a ontologia específica de sua criatura, relacionando com bom humor as diversas personas que compõe e que interagem com o personagem principal.
E não para por aí.
Para um futuro próximo, os planos são de transformar as tiras dominicais em uma publicação independente por meio de financiamento coletivo. Acompanhe de perto o trabalho de Pedro Sangeon no Facebook (@GurulinoBook) e no Instagram (@gurulino). Brasília vive!